Raquel Delvaje

sexta-feira, 22 de março de 2013

MISTÉRIO XXVI - A SINISTRA CASA MUSICAL



                                Era uma pequena cidade do interior de Santa Catarina onde prevalecia a exploração do carvão. Os homens trabalhavam em minas colocando suas vidas em iminente perigo. Não havia futuro para os jovens, aos homens restava aquela única profissão. A década era 60, Manoel, um jovem ambicioso, havia ganhado um prêmio representando o Brasil nas Minas de carvão, foi ele e seu pai aos Estados Unidos e ficaram seis meses, teve oportunidade de conhecer novidades musicais e de modos e estilos que encheram a cabeça do adolescente sonhador. Músicas com ritmos contagiantes.
                                Seguindo as tendências americanas, Manoel começou a tocar os discos em sua garagem e atraía vários amigos. Não contente, sonhava com uma excelente e famosa boate. Mas tudo era muito difícil, encontrava constantes barreiras, ora com os anciãos da província, ora com a própria igreja que condenava aquele ritmo musical, dizendo que era manifestação do capeta. Muito contrariado, numa madrugada fria e solitária, caminhando pela cidade, encontrou um anão que já era seu conhecido, estiveram juntos um pouco antes de ele ir aos estados Unidos:
                                 -Olá, disse o pequeno homem.
                                 Surpreso com o encontro, pois já nem se lembrava do tal homenzinho, o cumprimentou meio desconfiado. O anão foi logo perguntando sobre sua vida, se havia mudado desde o último encontro.
                                 - Você se lembra de que havia dito que gostaria de conhecer os Estados Unidos?  Pois então, eu realizei seu sonho. Eu lhe disse que o faria. Ficou contente?
                                  Nesse momento, Manoel lembrou-se da conversa que tiveram no passado, naquela noite estava triste, começara a trabalhar nas minas de carvão, pois seu pai, o Adamastor, já estava debilitado dos pulmões. Refletira que seu pai nem era tão velho, mas parecia ter muito mais idade e isso o deixou desolado. Foi quando encontrou esse anão que se apresentou com o nome de Lucinero e prometeu a ele uma vida diferente, bastava que desejasse e teria seus sonhos realizados. Uma semana depois, houve um concurso na escola onde os alunos dissertavam sobre a vida nas minas de carvão e ele falou com tanto sentimento da vida que seu Adamastor levava, das dificuldades, da doença provocada pelas más condições no trabalho, que sua redação ficou famosa e enfim ganhou o primeiro premio e ainda foi convidado a falar sobre o assunto em palestras nos Estados Unidos. Agora estava ali, estaca zero, tudo igual. Acabara o prestigio e deveria voltar para as minas. Sonhou com a boate, porém não teve jeito, as poucas pessoas que frequentavam não eram suficientes para garantir sua sobrevivência. E naquele momento, abria seu coração para Lucinero que o ouvia e o enchia de esperanças, pois dizia que assim como o levou ao exterior, daria a ele uma famosa boate e que viria gente de todas as redondezas e em pouco tempo estaria rico.
                                Ao amanhecer o dia, Manoel teve a sensação de que veria seus sonhos  realizados. Naquele final de semana tinha o dobro de jovens em sua garagem. E semana após semana ele viu esses jovens dobrarem e o dinheiro que era cobrado se multiplicou e ele se viu na condição de alugar um imóvel e montar sua boate. Era tanta gente que vinha dançar que nem ele acreditava, toda semana tinha dinheiro para investir.
                                 Os mais velhos da cidade não viam como uma boa influência aquelas músicas, tentavam afastar seus filhos desse caminho.
                                 Depois de algum tempo, Manoel se viu desfrutando de riquezas, mas ainda queria mais. No dia da festa da padroeira da pequena cidade, houve uma manifestação da igreja que aquela danceteria não abrisse, entretanto foi em vão, pois eles abriram, contrariando todas as regras da província.
                                   Aldelina era uma mulher que tinha uma audição privilegiada, todos a conheciam. Era capaz de ouvir o trem a quilômetros de distância, como também  ouvir rolar pedras dentro da terra e antes de acontecer uma tragédia de soterramento de alguma mina, conseguia  avisar a todos e se salvarem a tempo. Devido a isso , era muito respeitada na cidade. Conhecia também os segredos de muitos. Mas era discreta.
                                    A velha mulher andava muito angustiada, porquanto ouvira a conversa naquela madrugada silenciosa, sabia que algo errado acontecera. Sua filha caçula, que era adolescente, também estava indo à boate e não tinha nada que a fizesse parar de ir. Aldelina tentava convencer a filha que não fosse mais naquele lugar, sentia em seu coração uma angustia ao ver sua Lidiana saindo acompanhada de mais seis jovens e também de Manoel, que era seu amigo desde criança. Três deles eram sobrinhos da mulher.
                                  Muitos jovens e também adultos estavam na danceteria quando houve uma grande explosão de uma mina, afundando a casa musical e levando consigo todos que estavam ali, inclusive os oito jovens. Houve um grande alvoroço na cidade, tentativas de escavar, mas nada encontraram, as buscas foram durantes dias, até  resolverem partir para um funeral simbólico dos desaparecidos. Aldelina  estranhava, pois pela primeira vez não ouvira nenhuma pedra rolar antes da explosão e ficava ali sentada triste, velando o lugar onde sua filha estaria soterrada.
                                   Foi numa tarde que a mulher pensou ter escutado algo e resolveu colocar seu ouvido próximo ao chão e pode ouvir nesse momento uma música, a mesma que estava acostumada a ouvir nos dias em que a boate abria. Sentiu um arrepio pelo corpo. Tinha certeza do que estava ouvindo, a música tocava como se a boate estivesse em pleno funcionamento. No desespero, chamou algumas pessoas para ouvir também, mas foi vista como louca. Foi o que todos pensaram, que tivesse enlouquecido com  a morte de Lidiana.
                                   Desconsolada a pobre mulher resolveu escavar por dentro de uma mina que havia perto e que estava desativada. A mulher seguiu durante meses o som da música que tocava  sem parar, ela entrava pelo túnel sem que alguém a percebesse e passava dia e noite cavando em direção ao som que se tornava cada vez mais audível para ela. Passado onze meses e alguns dias da tragédia, a cidade estava em alvoroço para a festa da padroeira e ela sabia que sua última chance acabaria quando completasse um ano. Ela continuou firme e acelerou mais sua escavação, passando mais horas trabalhando. O coração de Aldelina disparou quando ela se encontrou finalmente com a parede da boate, que estava intacta. Faltava uma hora para completar um ano da tragédia, a mulher se apegou à fé que tinha e começou a quebrar a parede, foi quando viu ao seu lado uma santa. A mãe de Lidiana tomou um susto tão grande que deixou cair a ferramenta de sua mão e começou a tremer e ouviu aquela aparição dizer a ela que não temesse, pois o que veria era o próprio inferno, mas essa era a  única chance de resgatar sua menina.
                                   A mulher se encheu de coragem e deu a última machadada, terminando a abertura e o que viu ali foi a coisa mais terrível que ela nunca imaginou que veria um dia. A música tocava alto e jovens dançavam como se estivem em hipnose , estavam pele e osso e com os cabelos desgrenhados. A casa noturna estava iluminada por labaredas de fogo e o calor fazia com que os corpos suados e fedidos parecessem cera derretendo-se. Algumas pessoas estavam pregadas nas paredes e tinham algumas partes dos corpos mutiladas, mesmo assim continuavam dançando sem parar. Em seus olhos havia a expressão de enfado, o cansaço visível e o terror estampado em cada rosto. Havia pelo salão pernas, braços e dedos cortados. Cada vez que alguém forçava  parar de dançar o membro dançava sozinho até se soltar do corpo e cair ainda se mexendo até a exaustão do próprio órgão. A luz era nefasta e Aldelina entrou naquele recinto fedido de suor, enxofre e carniça e procurou por sua filha e a encontrou dançando freneticamente, ao ver a mãe gritou desesperada:
                        - Me ajuda!
                        - Filha venha, vamos sair daqui!
               Assustada a menina segurou na mão da mãe e sentiu que seu corpo parou de se agitar, seguiu-a, mas logo se lembrou de seus amigos, gritou à mãe que não poderia deixá-los e imediatamente a mulher começou a procurá-los, segurando firme nas mãos de Lidiana. Encontrou os jovens um a um e foi segurando todos e indo em direção ao buraco da parede. Porém, surpreendeu-se com a presença do diabo que recusou deixá-la passar, dizendo que os adolescentes pertenciam a ele. A mãe da jovem começou a rezar em frente ao capeta e a dizer que aquelas almas não o pertenciam. Nisso Manuel desprendeu-se da mão da mulher, a oração queimou- lhe os dedos que caíram ao chão. O diabo estava resoluto em não deixá-la sair mais dali. Contudo ele sentiu que não mais poderia segurá-la, pois a reza lhe queimava também. Ele disse que ela sairia, porém sozinha. Aldelina decidida enfrentou o demo e passou por ele levando os seis jovens e sua filha. Manoel gritava desesperado querendo ir junto, mas todas as vezes que ele tocava na mulher queimava-se, ficava em chamas e derretia-lhe uma parte do corpo. Afligida com a situação de Manoel, a mulher ainda tentou puxá-lo e viu que era em vão, pois mais o rapaz se queimava. Ela saiu chorando com os jovens resgatados, soube que não havia mais tempo, ouviu nesse momento uma pedra rolar e sentiu que a mina ia desabar. Correram muito até chegar à saída e ao alcançarem a passagem os jovens desmaiaram. A pobre mulher não quis deixá-los sozinhos para buscar ajuda, temia que o diabo viesse e os levasse de volta, deitou-se ali, abraçada a eles até o dia amanhecer.
                   A procissão da santa padroeira chegou ao local e ajudaram a resgatar todos com segurança, os levaram para um tratamento, estavam todos desidratados e delirando, foram colocados no soro por muitos dias. Quando se recuperaram não souberam dizer o que havia acontecido e Aldelina explicou que estavam presos na mina , mas nunca falou sobre o inferno e o diabo. Eles acreditaram, pois não tinham lembrança de nada do que acontecera. Nunca ninguém daquela cidade entendeu como eles sobreviveram um ano soterrados e questionavam sobre as outras pessoas. A mulher simplesmente dizia não saber. De vez em quando alguém ainda a vê colocando os ouvidos naquele pedaço de chão e fica ali um bom tempo. Dizem que ela ouve a música tocando.
                           
  
Raquel Delvaje