Esse caso aconteceu no
final do século XIX, numa cidadezinha de Minas Gerais, um lugar tranquilo e de
poucos moradores. Jocemar era um homem trabalhador e tinha, com muita luta,
conquistado um pequeno comércio, mas não ia bem. Havia contraído dívidas
e andava preocupado. Estava no balcão, em pé, com o cotovelo apoiado e a mão no
queixo. Pensativo, analisava um meio de sair daquela situação. Não tinha nenhum
cliente naquele momento, eles estavam escassos desde que surgiu um concorrente
na rua de cima, que trazia novidades e produtos melhores da capital. Sem
recursos, o comerciante via-se cada dia mais às mínguas. Quando foi
surpreendido por um menino:
- “Moço, Padim perguntô si o
sinhô qué enricá?
-“ Quê”? – perguntou o homem
surpreso com aquele menino de calças curtas e cabelos negros.
- “Padim perguntô si o sinhô
que enricá”?
- “Padim? Que Padim? Por um
acaso é algum daqueles unhas de fome dos parentes de mãinha?
- “Sei não sinhô, sei somente
que ele mandô perguntá”.
- “Quero dinheiro dessa
corja não. Se eu tivé que enricá vai ser por meu esforço. Faça-me o favor de
levá esse recado a ele”
O moleque saiu
correndo, mas antes deixou um pacote no balcão. Quando Jocemar abriu e viu a
quantia de dinheiro que havia, correu atrás dele que gritou ao longe que o
dinheiro era para ele, dado pelo “ Padim”. Ao chegar à casa, o comerciante
contou para a esposa Juraci o ocorrido, ela sugeriu que usasse para pagar as
dívidas que com certeza era de algum tio ou irmão de sua mãe, arrependidos pela
injustiça do passado.
Após um ano, o comércio
de Jocemar já estava melhor, mas ele não estava satisfeito diante do
crescimento do concorrente que havia ampliado as instalações, o homem estava se
corroendo de inveja. Num final de tarde chuvoso e frio, não havia mais ninguém
nas ruas e o comerciante pensava em fechar as portas e ir para casa, no
aconchego de seu lar com sua mulher e seus três filhos. Quando se preparava
para pegar o guarda chuva, ouviu uma voz atrás do balcão.
-“ Moço, Padim
perguntô si o sinhô qué enricá?
- “Cê di novo
aqui moleque, quem é esse Padim? Ninguém dá dinheiro pá ninguém não, mi exprica
essa história”...
- “Sei di nada
não sinhô, sei somente qui Padim perguntô si o sinhô qué enricá”.
- “Pois diga a
esse Padim que quero falá com ele”
- “Ele vem
não sinhô, ele só vem si o sinhô repondê qui qué enricá”
- “Pois eu
não quero! Diga a ele que eu não preciso do dinheiro dele, quando mãinha mais
precisô eles não quiseram ajudá. Diga que agradeci pelo dinheiro, vou pagá o
que ele me emprestô, não quero nada dessa gente”.
O menino
virou as costas e saiu correndo, mas antes deixou um pequeno embrulho sobre o
balcão. Quando o comerciante viu o pacote, correu em direção a ele para
devolver, mas não houve mais tempo.
Contou
para Juraci, que ficou feliz, dizendo que gostaria de comprar umas roupas para
os filhos, não pensou duas vezes em gastar. O marido não quis que usasse o
dinheiro, guardou-o por dois meses. Depois, diante das necessidades, resolveu
usá-lo. Mas ficou preocupado se viessem lhe cobrar essa quantia. Mas a esposa
explicou que nada havia assinado, então não havia dívidas. Ele não parava de
pensar quem seria esse Padrinho, imaginava que era algum tio de sua mãe que no
momento em que ela mais precisou não a amparou, foi expulsa de casa, pois
estava grávida e solteira e após dar a luz morreu com tuberculose,
sozinha e pobre. Ele foi criado por uma família humilde que sempre o lembrava
da fortuna de seus entes. Muito revoltado, nunca procurou contato com esses
parentes e nem desejava nenhuma aproximação, sentia muita raiva pela situação
de miséria que sua mãe falecera.
Depois de um tempo, Juraci engravidou novamente e veio a nascer uma
menina, que era o grande sonho do casal. Jocemar ficou feliz demais com a
chegada da pequena, após o nascimento a esposa quis batizar a criança, mas o
marido não permitiu, assim como não havia permitido batizar os outros três
filhos. Ele não gostava de igreja. Ela, mesmo contrariada resolveu acatar
as ordens do marido.
Passado alguns meses do nascimento de Maria, o menino voltou a aparecer
no comércio do Jocemar, o homem assustou-se, pois o moleque estava igualzinho
da primeira vez, não havia mudado nada nesses anos. Nem crescido. Fez a mesma
pergunta de sempre e o comerciante reparou que ele tinha um pacote na mão, com
certeza mais dinheiro. O homem foi logo falando indignado:
-“
Que diacho é você menino”?
Falou isso e pulou do balcão grudando- o pela camisa de botões. O menino
assustado olhou-o e seus olhos ficaram vermelhos como brasa e apareceram dois
chifres e o rosto transfigurou-se, surgindo o demônio em frente ao comerciante
que o largou alarmado. Nisso vinha entrando a esposa com a pequena Maria nos
braços. O capeta correu em direção à mulher e puxou o bebê e foi em direção à
porta e falou:
-
“ Essa é minha, pelo pagamento do dinheiro que lhe dei”- E fugiu levando a
filha do casal.
Jocemar e Juraci ficaram atônitos e desesperados. A primeira decisão que
tomaram foi de irem à igreja e falar com o padre, que não acreditou no
casal. Imaginou que eles tivessem feito alguma coisa com a filha e estavam
tentando encobrir o mal. Era uma história irreal e o padre não simpatizava nem
um pouco com aquele homem que não frequentava sua capela. Comunicou as
autoridades o sumiço da pequena Maria e todos os moradores da cidade ficaram
desconfiados dos pais da menina. Passando por uma situação muito difícil, o
homem começou a procurar pela filha dia e noite sem cessar e a esposa passou a
ir à igreja. Entrava quietinha e sentava num canto atrás e ali ficava entre
penitências e rezas. Ninguém vinha falar com ela. Até que teve um dia que o
padre se aproximou e disse para fazer uma novena e ela começou imediatamente.
Nove dias depois estava a mulher sentada numa cadeira na porta da cozinha
esperando a água do café ferver no fogão de lenha, era cinco horas da manhã e
ainda estava escuro e passavam muitos trabalhadores indo para a roça. Todos
apontavam e cochichavam e Juraci abaixava a cabeça triste, pois não tinha a
solidariedade de ninguém. Seu marido estava revoltado e já não trabalhava, saia
cedo de casa e passava todo o dia andando que nem louco e sem destino, dizendo
que estava à procura da filha. Os alimentos já estavam acabando em sua casa e
ela se fazia valer da horta e dos poucos animais que possuía na pequena chácara
que residia.
Foi quando ouviu alguns trabalhadores vindos em direção à sua casa gritando
afoitos que acharam a menina. A mulher sentiu seu coração disparar e desceu os
poucos degraus que davam para a rua e foi logo perguntando onde estava sua
filha. Eles contaram que três homens e duas mulheres chegaram à roça, próximo
dali e ouviram um choro e constataram a presença de uma menina entre o
bambuzal, mas não conseguiram remover a planta. Quando Juraci chegou ao local,
seu marido já estava lá e batia desesperado com um facão nos bambus, mas era em
vão, não conseguia cortar. Começaram a chegar pessoas que ouviram a notícia e
os homens se revezavam com facões, foices, facas, punhais, mas nada cortava os
troncos. A criança chorava, mas não passava para o outro lado que estava bem
fechado. Já se aproximava do meio dia e não conseguiam fazer nada. Maria
adormeceu e os homens continuavam a tentativa em vão. Desesperada com a fome e
sede da filha, pois não conseguiam passar nada pelo vão do bambu, a mulher
pegou o facão e bateu em uma das hastes e percebeu que cortou, começou a cortar
todos os troncos e chegou até a menina que acordou ao ser levantada do
solo pela mãe. A criança estava bem e foi acolhida por todos que ficaram
impressionados com o que viram. Após o acontecido, as pessoas foram se
dispersando, indo embora e Jocemar parou por um momento e pediu para que a
mulher continuasse o trajeto. Ela não queria que ele voltasse, mas ele disse
que precisava, pois isso não ia parar. Ao vê-lo se distanciando a esposa sentiu
seu coração se apertando e teve a certeza que não o veria mais.
Ao voltar ao bambuzal, avistou um homem muito bem arrumado de terno e
chapéu dizendo que já o esperava, esse homem estava num cavalo e disse ser o
Padrinho, mandou que ele subisse no animal e foram em direção a um lugar que Jocemar
não imaginava onde era. Passaram horas galopando e o comerciante começou a
ficar com medo. Começou a rezar bem baixinho e o homem bem vestido, que até
então estava em silêncio, virou o rosto para trás e disse bravo:
-“ Você quer parar de cochichar no meu cangote”!
Disse isso e começou a correr mais com o cavalo, o comerciante mais
assustado ainda continuou a reza, só que dessa vez baixinho, quase
imperceptível. O homem irritado gritou com ele:
-“ Quer parar de cochichar no meu cangote”!
Jocemar, tremendo de medo, percebeu que estavam rodando
sempre no mesmo lugar e já era noite, estava frio e escuro, começou então a
rezar só no pensamento, o homem enfezado, olhou para trás com os olhos em brasa
e o rosto totalmente desfigurado e disse aos berros:
- “Eu já disse para você parar de cochichar no meu cangote”!
Disse isso e o cavalo saltou por cima do muro do cemitério da
cidade. E ao ver aquele animal saltando tão alto, o comerciante gritou:
- “Valha-me Nossa Senhora!”
Ao dizer isso, ele caiu para o lado de fora do muro e viu
um monte de demônios o aguardando, começaram a puxá-lo para dentro do portão,
ele assustado e meio entorpecido por ter batido a cabeça, continuou rezando no
pensamento e os demônios começaram a queimar as mãos e não conseguiam segurar
nele, nisso veio um bicho horrível com pés de bode e grandes chifres, dizendo
que veio pegar o que era dele, sua alma. Mas Jocemar disse nunca ter vendido
sua alma, nunca pediu dinheiro ou aceitou, simplesmente ele deixava o dinheiro
lá por que queria. Nisso o demônio olhou para o capetinha que transformava no
menino e esse lhe disse:
- “Não olhe assim para mim! Eu não fiz nada!”
O demônio ficou tão furioso que grudou o capetinha
pelo chifre e o levou a pontapés para dentro do cemitério. Jocemar ficou
ali, lívido e sozinho.