Raquel Delvaje

domingo, 20 de maio de 2018



Ele era uma estrada com sol...
Com luz de estrelas...
Desde a alma... Até o sorriso.
Ela era o chão de terra... 
Que se enchia de flores... 
                   
                                (Raquel Delvaje)






 


sexta-feira, 22 de março de 2013

MISTÉRIO XXVI - A SINISTRA CASA MUSICAL



                                Era uma pequena cidade do interior de Santa Catarina onde prevalecia a exploração do carvão. Os homens trabalhavam em minas colocando suas vidas em iminente perigo. Não havia futuro para os jovens, aos homens restava aquela única profissão. A década era 60, Manoel, um jovem ambicioso, havia ganhado um prêmio representando o Brasil nas Minas de carvão, foi ele e seu pai aos Estados Unidos e ficaram seis meses, teve oportunidade de conhecer novidades musicais e de modos e estilos que encheram a cabeça do adolescente sonhador. Músicas com ritmos contagiantes.
                                Seguindo as tendências americanas, Manoel começou a tocar os discos em sua garagem e atraía vários amigos. Não contente, sonhava com uma excelente e famosa boate. Mas tudo era muito difícil, encontrava constantes barreiras, ora com os anciãos da província, ora com a própria igreja que condenava aquele ritmo musical, dizendo que era manifestação do capeta. Muito contrariado, numa madrugada fria e solitária, caminhando pela cidade, encontrou um anão que já era seu conhecido, estiveram juntos um pouco antes de ele ir aos estados Unidos:
                                 -Olá, disse o pequeno homem.
                                 Surpreso com o encontro, pois já nem se lembrava do tal homenzinho, o cumprimentou meio desconfiado. O anão foi logo perguntando sobre sua vida, se havia mudado desde o último encontro.
                                 - Você se lembra de que havia dito que gostaria de conhecer os Estados Unidos?  Pois então, eu realizei seu sonho. Eu lhe disse que o faria. Ficou contente?
                                  Nesse momento, Manoel lembrou-se da conversa que tiveram no passado, naquela noite estava triste, começara a trabalhar nas minas de carvão, pois seu pai, o Adamastor, já estava debilitado dos pulmões. Refletira que seu pai nem era tão velho, mas parecia ter muito mais idade e isso o deixou desolado. Foi quando encontrou esse anão que se apresentou com o nome de Lucinero e prometeu a ele uma vida diferente, bastava que desejasse e teria seus sonhos realizados. Uma semana depois, houve um concurso na escola onde os alunos dissertavam sobre a vida nas minas de carvão e ele falou com tanto sentimento da vida que seu Adamastor levava, das dificuldades, da doença provocada pelas más condições no trabalho, que sua redação ficou famosa e enfim ganhou o primeiro premio e ainda foi convidado a falar sobre o assunto em palestras nos Estados Unidos. Agora estava ali, estaca zero, tudo igual. Acabara o prestigio e deveria voltar para as minas. Sonhou com a boate, porém não teve jeito, as poucas pessoas que frequentavam não eram suficientes para garantir sua sobrevivência. E naquele momento, abria seu coração para Lucinero que o ouvia e o enchia de esperanças, pois dizia que assim como o levou ao exterior, daria a ele uma famosa boate e que viria gente de todas as redondezas e em pouco tempo estaria rico.
                                Ao amanhecer o dia, Manoel teve a sensação de que veria seus sonhos  realizados. Naquele final de semana tinha o dobro de jovens em sua garagem. E semana após semana ele viu esses jovens dobrarem e o dinheiro que era cobrado se multiplicou e ele se viu na condição de alugar um imóvel e montar sua boate. Era tanta gente que vinha dançar que nem ele acreditava, toda semana tinha dinheiro para investir.
                                 Os mais velhos da cidade não viam como uma boa influência aquelas músicas, tentavam afastar seus filhos desse caminho.
                                 Depois de algum tempo, Manoel se viu desfrutando de riquezas, mas ainda queria mais. No dia da festa da padroeira da pequena cidade, houve uma manifestação da igreja que aquela danceteria não abrisse, entretanto foi em vão, pois eles abriram, contrariando todas as regras da província.
                                   Aldelina era uma mulher que tinha uma audição privilegiada, todos a conheciam. Era capaz de ouvir o trem a quilômetros de distância, como também  ouvir rolar pedras dentro da terra e antes de acontecer uma tragédia de soterramento de alguma mina, conseguia  avisar a todos e se salvarem a tempo. Devido a isso , era muito respeitada na cidade. Conhecia também os segredos de muitos. Mas era discreta.
                                    A velha mulher andava muito angustiada, porquanto ouvira a conversa naquela madrugada silenciosa, sabia que algo errado acontecera. Sua filha caçula, que era adolescente, também estava indo à boate e não tinha nada que a fizesse parar de ir. Aldelina tentava convencer a filha que não fosse mais naquele lugar, sentia em seu coração uma angustia ao ver sua Lidiana saindo acompanhada de mais seis jovens e também de Manoel, que era seu amigo desde criança. Três deles eram sobrinhos da mulher.
                                  Muitos jovens e também adultos estavam na danceteria quando houve uma grande explosão de uma mina, afundando a casa musical e levando consigo todos que estavam ali, inclusive os oito jovens. Houve um grande alvoroço na cidade, tentativas de escavar, mas nada encontraram, as buscas foram durantes dias, até  resolverem partir para um funeral simbólico dos desaparecidos. Aldelina  estranhava, pois pela primeira vez não ouvira nenhuma pedra rolar antes da explosão e ficava ali sentada triste, velando o lugar onde sua filha estaria soterrada.
                                   Foi numa tarde que a mulher pensou ter escutado algo e resolveu colocar seu ouvido próximo ao chão e pode ouvir nesse momento uma música, a mesma que estava acostumada a ouvir nos dias em que a boate abria. Sentiu um arrepio pelo corpo. Tinha certeza do que estava ouvindo, a música tocava como se a boate estivesse em pleno funcionamento. No desespero, chamou algumas pessoas para ouvir também, mas foi vista como louca. Foi o que todos pensaram, que tivesse enlouquecido com  a morte de Lidiana.
                                   Desconsolada a pobre mulher resolveu escavar por dentro de uma mina que havia perto e que estava desativada. A mulher seguiu durante meses o som da música que tocava  sem parar, ela entrava pelo túnel sem que alguém a percebesse e passava dia e noite cavando em direção ao som que se tornava cada vez mais audível para ela. Passado onze meses e alguns dias da tragédia, a cidade estava em alvoroço para a festa da padroeira e ela sabia que sua última chance acabaria quando completasse um ano. Ela continuou firme e acelerou mais sua escavação, passando mais horas trabalhando. O coração de Aldelina disparou quando ela se encontrou finalmente com a parede da boate, que estava intacta. Faltava uma hora para completar um ano da tragédia, a mulher se apegou à fé que tinha e começou a quebrar a parede, foi quando viu ao seu lado uma santa. A mãe de Lidiana tomou um susto tão grande que deixou cair a ferramenta de sua mão e começou a tremer e ouviu aquela aparição dizer a ela que não temesse, pois o que veria era o próprio inferno, mas essa era a  única chance de resgatar sua menina.
                                   A mulher se encheu de coragem e deu a última machadada, terminando a abertura e o que viu ali foi a coisa mais terrível que ela nunca imaginou que veria um dia. A música tocava alto e jovens dançavam como se estivem em hipnose , estavam pele e osso e com os cabelos desgrenhados. A casa noturna estava iluminada por labaredas de fogo e o calor fazia com que os corpos suados e fedidos parecessem cera derretendo-se. Algumas pessoas estavam pregadas nas paredes e tinham algumas partes dos corpos mutiladas, mesmo assim continuavam dançando sem parar. Em seus olhos havia a expressão de enfado, o cansaço visível e o terror estampado em cada rosto. Havia pelo salão pernas, braços e dedos cortados. Cada vez que alguém forçava  parar de dançar o membro dançava sozinho até se soltar do corpo e cair ainda se mexendo até a exaustão do próprio órgão. A luz era nefasta e Aldelina entrou naquele recinto fedido de suor, enxofre e carniça e procurou por sua filha e a encontrou dançando freneticamente, ao ver a mãe gritou desesperada:
                        - Me ajuda!
                        - Filha venha, vamos sair daqui!
               Assustada a menina segurou na mão da mãe e sentiu que seu corpo parou de se agitar, seguiu-a, mas logo se lembrou de seus amigos, gritou à mãe que não poderia deixá-los e imediatamente a mulher começou a procurá-los, segurando firme nas mãos de Lidiana. Encontrou os jovens um a um e foi segurando todos e indo em direção ao buraco da parede. Porém, surpreendeu-se com a presença do diabo que recusou deixá-la passar, dizendo que os adolescentes pertenciam a ele. A mãe da jovem começou a rezar em frente ao capeta e a dizer que aquelas almas não o pertenciam. Nisso Manuel desprendeu-se da mão da mulher, a oração queimou- lhe os dedos que caíram ao chão. O diabo estava resoluto em não deixá-la sair mais dali. Contudo ele sentiu que não mais poderia segurá-la, pois a reza lhe queimava também. Ele disse que ela sairia, porém sozinha. Aldelina decidida enfrentou o demo e passou por ele levando os seis jovens e sua filha. Manoel gritava desesperado querendo ir junto, mas todas as vezes que ele tocava na mulher queimava-se, ficava em chamas e derretia-lhe uma parte do corpo. Afligida com a situação de Manoel, a mulher ainda tentou puxá-lo e viu que era em vão, pois mais o rapaz se queimava. Ela saiu chorando com os jovens resgatados, soube que não havia mais tempo, ouviu nesse momento uma pedra rolar e sentiu que a mina ia desabar. Correram muito até chegar à saída e ao alcançarem a passagem os jovens desmaiaram. A pobre mulher não quis deixá-los sozinhos para buscar ajuda, temia que o diabo viesse e os levasse de volta, deitou-se ali, abraçada a eles até o dia amanhecer.
                   A procissão da santa padroeira chegou ao local e ajudaram a resgatar todos com segurança, os levaram para um tratamento, estavam todos desidratados e delirando, foram colocados no soro por muitos dias. Quando se recuperaram não souberam dizer o que havia acontecido e Aldelina explicou que estavam presos na mina , mas nunca falou sobre o inferno e o diabo. Eles acreditaram, pois não tinham lembrança de nada do que acontecera. Nunca ninguém daquela cidade entendeu como eles sobreviveram um ano soterrados e questionavam sobre as outras pessoas. A mulher simplesmente dizia não saber. De vez em quando alguém ainda a vê colocando os ouvidos naquele pedaço de chão e fica ali um bom tempo. Dizem que ela ouve a música tocando.
                           
  
Raquel Delvaje

sábado, 9 de fevereiro de 2013

MISTÉRIO XXV - O SINISTRO RITUAL MACABRO.





                 Quando Marina cruzou a rua da periferia de Campinas, trazia seu coração acelerado, experimentava o medo por caminhar pouco menos da meia noite num lugar tão obscuro, entretanto, estava decidida.  Fazia um mês que ela conhecera Rodrigo Alves, homem jovem, rico e bonito que estava sempre nas colunas sociais. Após se conhecerem, a moça pobre se encantou com o rapaz. Ela era alta, morena e de olhos cor de mel, despertava a atenção por sua formosura, porém, nunca dava sorte com nenhum homem, acabava sendo mais uma aventura. Com Rodrigo, no início se sentiu desejada, mas após uma semana percebeu que o seu novo afeto já não a correspondia, chateada, buscou muitos meios de conquistá-lo, mas foi em vão.
                   Um dia foi conversar com uma mandingueira que disse a ela que fizesse um trabalho e teria seu amor retribuído por sete anos e se fosse bem feito, apropriar-se-ia de riquezas. A apaixonada aceitou a proposta e era justamente isso que estava indo concretizar na noite escura e gelada. Não havia ninguém nas ruas e estava à procura de uma chácara abandonada que tinha uma enorme árvore antiga, que foi por muitos anos abrigo de rituais macabros. Precisaria chegar antes de completar meia noite e sair de lá somente ao amanhecer. Levava consigo um gato preto que deveria enterrar vivo ao pé da velha árvore.
                   Ao deparar com o portão antigo de ferro e os muros altos, teve dúvida de como entraria, porém percebeu que o cadeado estava aberto, puxou a grossa corrente enferrujada e adentrou-se, fechando-o novamente. Sentiu um calafrio terrível, o medo a dominou. A escuridão da noite de lua minguante fazia tudo ficar mais tenebroso. A árvore gigante estava à sua frente fazendo uma sombra carregada e ela não conseguia distinguir nenhuma imagem naquela penumbra, as luzes dos postes ficaram para trás, na rua, e ali ela só tinha o breu como companhia. Sentou-se na grande raiz e olhou no relógio, faltavam dez minutos e tinha que aguardar completar meia noite.
                  De repente, arrependeu-se pela decisão que havia tomado, quis ir embora, foi até a saída e misteriosamente estava com o cadeado fechado, estremeceu de medo. Tentou escalar o portão, mas era muito alto e tinha lanças pontiagudas. Principiou a chorar em desespero, queria sair dali, mas não conseguia. Quando olhou no relógio, viu que era meia noite e começou a gritar que alguém a socorresse. Veio um velho do fundo da chácara e a acalmou dizendo que não se preocupasse, ele ia buscar a chave. Marina ficou aliviada com aquele homem com a barba por fazer, vestindo roupas surradas e com chapéu de palha, com jeito de caipira. Sentiu confortar seu coração com a presença, acompanhou-o e ao aproximar-se do arvoredo ele pediu para que ela o esperasse ali, não tinha perigo nenhum, ia até o casarão pegar as chaves. A moça assentou-se novamente no mesmo lugar de antes e estava aliviada, mas bastou o homem sumir na escuridão e seu coração disparou. Pensou em correr atrás do matuto, mas se conteve, pois não sabia exatamente o que havia à frente, o breu dominava tudo. Resolveu fazer uma pequena fogueira para espantar o frio e a escuridão.
                     Ao levantar a cabeça, viu uma senhora se aproximando com um bebê, colocou-o no pé da árvore e tirou uma faca da cintura e enfiou no coração da criança. Assustada, Marina gritou e tentou tirar a faca das mãos da mulher que a olhou com sua face desfigurada, comida por vermes.
                     - O que você fez – Gritou marina  - Você é louca.
                 
                      Segurou-a pelos pulsos, tentando evitar que ela esfaqueasse mais o recém-nascido e essa a jogou longe com uma força abissal. Pegou a criança e bebeu seu sangue como se fosse um animal faminto, após, comeu lhe a carne saciando-se e a moça horrorizada assistiu a cena caída ao chão ao lado do fogo que quase a queimou. Apareceu o velho com um molho de chaves e ela correu aos seus braços, chorando e denunciando o que havia visto.
                       - Não se assuste! Isso é normal por aqui, com o tempo você se acostumará – disse o velho.
                       Ao olhar para ele, já não era mais o homem que havia visto, estava transfigurado, tinha uma cara extremamente enrugada e os olhos vermelhos como brasa, estava mais magro, quase uma caveira, suas mãos estavam compridas e com enormes unhas. Pegou o que restou do bebê e comeu faminto e riu satisfeito. Marina começou a chorar e correr. Foi facilmente alcançado pelo velho que rasgou sua carne com as unhas afiadas e levou-a de volta para a árvore e disse:
                       - Agora você escolhe, ou come o bebê ou será comida por nós.
                      Olhou à sua volta e viu várias pessoas e outro recém-nascido pronto para ser sacrificado. Ela sangrava com o ferimento em suas costas. Entre as pessoas estava Rodrigo, Marina ficou abalroada ao ver seu amado ali entre as aberrações e ele estava horrível e lhe sorria e dava as boas vindas ao mundo do sucesso. O seu amado estava com uma aparência sombria e seu rosto não tinha mais a beleza, era um rosto profundamente magro e em sua cabeça tinha apenas alguns fios de cabelo, em contraste à bela cabeleira negra de outrora, seus dentes amarelos e raros e a pele cinza. Ele estava bebendo o sangue quente do gato preto que havia sacrificado naquele momento. Marina pegou o bebê, todos sorriram, uma vez que sabiam que ia sacrificá-lo, mas num ímpeto a moça correu com a criança no colo atiçando a ira de todos os presentes. Fugiu e conseguiu se esconder no casarão e viu quando todos a procuravam ensandecidos. Conseguiu se embrenhar no mato e alcançou o rio. Ficou escondida quieta enquanto o pequeno bebê dormia tranquilamente, agasalhado em uma  manta.
                       Ao amanhecer o dia, voltou para sua casa e não sabia o que fazer, pensou em ir a uma delegacia, porém teve medo, não sabia o que aconteceria com os dois. Estava cansada demais para pensar em alguma coisa. Deitou exausta na cama para dormir e acordou com alguém batendo na porta e ao abrir era  Rodrigo, todo sedutor, dizendo que a amava e que gostaria de viver com ela e  que abandonaria a vida errante. Marina se entregou ao amor, seduzida pela paixão. Entraram duas pessoas despercebidamente ao outro quarto e devoraram a criança, arrancando-lhe a cabeça para levar ao novo ritual noturno, quando a moça percebeu o movimento em sua casa, foi ao outro cômodo e se deparou com aquelas pessoas com a boca ensanguentada e rindo diabolicamente. Ela, revoltada, atacou  a todos com fúria e Rodrigo se transformou com garras e rasgou sua carne, lambendo os dedos e se saciando com seu sangue. Ela olhou para ele e jurou vingança. Ele riu incrédulo. E a matou sem piedade.
                       A polícia encontrou o corpo e pelas investigações chegou facilmente ao moço que foi preso.
                         Rodrigo ordenou que o capeta fosse visitá-lo, pois tinham um trato. Após uns quinze dias que ele estava na prisão, recebeu a visita de um homem bem vestido que se apresentou como advogado e ao chegar à cela foi logo cobrado pelo rapaz furioso que disse que ele tinha obrigação de protegê-lo. Esse, calmamente, olhou-o com olhar frio e penetrante e respondeu.
                 - Você já ganhou o que queria, nosso trato era de sete anos, agora é isso ou a morte!
                   O moço ficou aturdido quando percebeu a cilada que estava. E quando olhou para o capeta, viu atrás, a moça rindo feliz, pois se aliara ao demônio e pediu vingança pela sua morte em troca de sua alma.
                  Naquela noite, ela estava lá na chácara, comendo e bebendo carne e sangue ofertado por mais um ganancioso que faz qualquer coisa por riqueza, sucesso e amor.
                  E quem passa por aquelas bandas à meia noite sente um calafrio e avista ao longe aquele pequeno ritual macabro.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

MISTÉRIO XXIV - O MISTERIOSO CASO DO MENINO DA RODA DOS EXPOSTOS.



                                                          Era madrugada quando tocou a campainha da roda dos expostos, a primeira do Brasil, em Salvador, no ano de 1736. A freira bondosa acordou sonolenta e sentiu seu coração disparar, era a segunda criança da semana. A rotina naquele asilo nos últimos dois anos estava bastante agitada, tinha noites que deixavam duas a três crianças. Maria do Rosário era bondosa com os pobres enjeitados, acolhia-os com amor  e dedicava sua vida em servi-los:
                                 - Boa noite, meu filhinho, prazer em recebê-lo, nós vamos cuidar de você – Disse isso e sentiu as lágrimas brotarem em seus olhos.
                                  Era preocupante a situação do abrigo, havia muitas crianças e não parava de chegar outras tantas. E sempre que vinha um novo morador, era cercado pelas mulheres, querendo ver a carinha do recém-chegado à vida. Colocaram o nome de Raimundo e imediatamente passaram a chamá-lo de Mundinho. O padre Aurélio chegou cedo para tomar café e foi  lhe apresentado o menino. Quando o pároco olhou para aqueles olhinhos brilhantes, teve certeza de ter recebido um sorriso e sorriu também. Foi uma simpatia imediata, prometeu que se ninguém o levasse, quando ficasse mais mocinho iria para a capela, seria coroinha, pegou-o no colo e riu largamente.
                                    As visitas que já eram diárias passaram a acontecer mais vezes ao dia, bastava não estar em alguma função na paróquia que apressava os passos para a casa de abrigo. As senhoras, frequentadoras das missas, acostumadas com a visita do padre nas horas do chá e dos jantares, estavam estranhando o sumiço, ficaram enciumadas com o pequeno Mundinho ao saberem que era o motivo da ausência do homem.
                                      Os anos passaram e ninguém buscou o menino, que crescia forte. No bilhete que estava com ele no dia em que fora deixado na roda, dizia que possuía uma mãe que o amava muito e que viria buscá-lo, mas esse dia nunca chegava e o moleque não conhecia outra vida que não fosse aquela do asilo. Esperto e falante, vivia tirando as irmãs do sério, que eram carinhosas e a maioria gostava dele, pois sabia cativar. Mas tinha uma freira, Griselda, que era muito mal humorada, essa o órfão nem chegava perto, era a que mais aplicava a palmatória e se irritava por qualquer motivo. Tinha uma implicância em especial com aquele que era o pupilo do padre, mas em vista deste, sempre fingia carinho. Um dia, ao deixar cair o prato da refeição no chão, Mundinho com seis anos, foi cruelmente castigado por Griselda, que além de deixá-lo sem jantar, bateu com a palmatória e prendeu-o no porão frio e escuro, onde tinha ratos e baratas e o deixou por toda a noite. As demais freiras não concordavam com tamanho castigo, mas obedeciam, pois eram subordinadas. Quando padre Aurélio chegou no dia seguinte mais cedo que de costume, pois uma delas conseguiu avisá-lo do castigo imposto  ao órfão, a freira algoz ficou pálida que nem papel e correu tirar o moleque do porão e assustou-se,  o menino estava com o rosto desfigurado pelas mordidas dos ratos. Foi um choque terrível para todos os presentes, a criança quase morreu, teve febres e infecções. Depois de ter sido tratado por um médico que estava residente em Salvador, ele se recuperou da infecção, mas ainda estava aberta a ferida e precisava de cuidados maiores e por decisão de todos, foi morar na capela.
                     Assim que chegou, foi muito bem recebido, as mulheres frequentadoras da paróquia vieram recepcioná-lo e encheram o pároco de elogios, todas eram unânimes em citar a bondade e o espírito generoso ao acolher a criança e o padre por sua vez, sentia-se muito feliz, pois adorava elogios.
                      Passado alguns meses, houve a cicatrização do ferimento e  ficou uma coisa horripilante. Muitas pessoas sentiam repulsa ao ver aquele rosto tão deformado e o padre  arrependeu-se de ter acolhido o menino. Não sabia como se livrar, pois assim como foi enaltecido pela atitude do acolhimento, poderia ser mal visto ao deixá-lo, percebeu que não tinha opção, teria que ficar com a criança. Passou a se aborrecer com a presença do pequeno que já não conseguia ser tão engraçadinho, era repelido o tempo todo e via nos olhos das madames o desprezo e ouvia as palavras de infortúnio e comiseração. Passou a ser um fardo e não demorou muito para as pessoas pedirem ao padre que durante a missa ou eventos sociais que aquela criança não aparecesse publicamente. E foi assim que o Mundinho ia crescendo, desprezado. Via os anos passarem e tudo ficava pior, sua feiura só aumentava. As pessoas se desviavam e ninguém queria se aproximar dele. Vivia no claustro como um bicho, escondido de todos. O vigário praguejava o dia em que decidira ficar com aquele menino.
                       Um dia, chegou uma mulher para se confessar, dizendo ao padre Aurélio que não podia mais conviver com a culpa de ter deixado uma criança na roda, pois havia engravidado e conseguiu esconder a gravidez da família, era solteira e pretendia na época noivar e casar. Por um amor infeliz, Laura perdeu a inocência e teve um filho, o qual não pode assumir. Disse ela que estava disposta a reaver a criança que estaria com 13 anos, seu marido havia falecido e podia adotar o menino sem que ninguém soubesse, era uma forma dela se dizimar da culpa que a perseguia. Surgiu uma esperança no pároco que aquela criança fosse Mundinho e prometeu à mulher que a ajudaria, pediu alguma informação que auxiliasse a encontrar o filho. Ela disse que quando o deixou ele tinha uma pulseira de ouro com uma pequena cruz e estava vestido com vestidinho azul e coberto com uma manta de pele. Naquele mesmo dia, o vigário foi ao abrigo e pediu para as freiras que gostaria de olhar o livro de registros. Griselda o acompanhou. Desde o dia do incidente, a mulher mudou completamente, ficou menos severa e procurava ser melhor para as crianças. Sentia-se muito mal, pois sabia do destino cruel do menino e de sua culpa. O padre a olhava incriminando-a e a desprezava, sentia que aquela freira era culpada do fardo que ele agora carregava.
                           Entraram os dois sozinhos na saleta escura e estreita, quando estavam folheando as páginas dos livros de registro, tanto o padre quanto a freira torciam para que o menino fosse Mundinho. O vigário havia dito a ela o ocorrido e talvez fosse uma forma de ambos se aliviarem da carga e foi um grande desapontamento quando viram que a criança da pulseirinha de cruz era na verdade José Maria, o menino que havia sido colocado na roda na mesma semana. Ambos sentaram e se entreolharam amargurados com a descoberta. O silêncio se fez diante da desconcertante revelação e foi quebrado por Griselda que teve uma iluminada ideia. Sugeriu que trocassem os registros, estavam tão próximos que não haveria como desconfiar, trocaria os nomes de Mundinho por José Maria e vice versa, usaria uma técnica que aprendera para fazer correções sem rasurar. Acordo feito, era só comunicar a compungida mãe que seu filho era Mundinho. Prometeram um pacto de segredo, em que ambos eram interessados.
                               Ao apresentar para a  suposta mãe, o menino, foi visível a cara de decepção que ela esboçou e se recusou a reaver aquele filho. Diante de seu segredo revelado, o padre coagiu-a a adotar o órfão, dizendo que ela era a mãe e deveria se responsabilizar. Tentaram de toda a forma um acordo. Laura sugeriu ajudar financeiramente a igreja, mas o padre não queria mais o Mundinho, nem por dinheiro, não suportava a ideia daquele convívio em sua capela e não podia devolvê-lo ao abrigo, pois não seria bem visto. A mulher explicava que as pessoas iam desconfiar, pois o que levaria alguém a adotar uma criança deformada que causava repulsa a todos que o viam. O padre balançava os braços desesperado na tentativa de convencê-la, dizendo que podia alegar amor ao próximo. Mas ela estava irredutível, disse que não e pronto.
                              O vigário furioso ameaçou revelar o segredo e ela o olhou indignada, não acreditava que estava ouvindo esse despautério e paralisou-se diante da possível revelação de seu passado. Era uma mulher da sociedade e acabaria com toda a reputação dela. Isso não podia acontecer. Diante do impasse, tomaram uma decisão, matariam o menino e todos estariam livres. A freira foi chamada e ficou lívida diante do proposto. Disse que jamais participaria disso. Mas o padre foi veemente ao dizer da culpa que tinha ao mexer nos dados do livro e que seria interessante Dona Laura ser revelada da trama suja. Diante das ameaças, Griselda viu que não tinha outra saída, deveria aceitar e por um ponto final em tudo.
                            Após o combinado, a suposta mãe foi até a capela e pegou o Mundinho, que estava magro, disse a ele que iriam passear. O menino sentiu uma alegria muito grande em seu coração. Aquela mulher bonita dando lhe atenção era realmente comovente ao pobre enjeitado. Ao chegarem a uma cabana, no meio do mato, o menino muito alegre, conversava timidamente. Laura sentiu dó e não queria mais  realizar o plano de matar aquele que ela pensava ser seu filho. Abraçou-o e revelou  ser sua mãe, que não poderia ficar com ele, mas o amava. Mundinho sentiu seu coração cheio e forte. Abraçou Laura e pediu que não o deixasse nunca mais, que ele também a amava e esperou por muito tempo sua volta. A mulher, tomada pela emoção, prometeu nunca mais o deixar e diante do combinado chegou o padre com uma faca e a freira. O menino pressentindo alguma coisa, olhou para Laura com seus olhinhos encharcados de lágrimas e disse:
                             - Mamãe, o que vocês vão fazer?
                              O vigário a olhou juntamente com a freira e entregaram lhe a faca. O padre segurou o menino pelo corpo franzino e mandou que Laura o esfaqueasse, senão revelaria seu segredo. A mulher, tremendo, segurou a faca na mão e enfiou na barriga de Mundinho, que chorou e olhando para a mãe disse:
                             - Mãezinha, por que fez isso comigo? Aquele bilhete que você me deixou dizendo que eu tinha uma mãe que me amava muito e que um dia voltaria... Sempre lhe esperei...
                             Assustada, Laura olhou para o padre e para a freira e disse como se fosse um instinto:
                             - Esse não é o meu filho, eu nunca deixei bilhete nenhum...
                             O padre tomou a faca de sua mão e esfaqueou o menino que chorava, matando-o. Griselda tremia. A suposta mãe exigiu uma explicação do que aconteceu ali, dizendo que aquele não era seu filho e a obrigaram a cometer um assassinato. A freira confessou ter trocado as fichas, diante do pároco que a mandava se calar. Histérica e em estado de choque, Laura pegou a faca e atingiu o padre que caiu no chão, foi para cima dele e perfurou-o inúmeras vezes, até ver a última gota de sangue jorrar  e a freira saiu correndo em seus passos pesados, pois era gorda e tinha pouco fôlego, facilmente a mulher enfurecida e com a faca na mão a alcançou, esfaqueando-a também.
                              No dia seguinte, Laura foi até o abrigo à procura de um menino que tinha sido deixado lá com um bilhete dizendo que sua mãe o amava e um dia voltaria para buscá-lo. Maria do Rosário deduziu que seria Mundinho,pois lembrava desse bilhete, mas ao olhar os registros, estranhamente verificou que se tratava de José Maria, concluiu que estava ficando velha e já não raciocinava bem. Laura disse que era filho de uma empregada antiga sua e que lhe pedira que o adotasse.
                              Após constatarem o sumiço do padre, da freira e do menino, encontraram os dois primeiros esfaqueados e mortos, um ao lado do outro. Estranhamente o corpo de Mundinho não estava lá e foi atribuído a ele o assassinato. Uma vez por ano Laura leva flores a um curioso túmulo no meio do mato, ela pede perdão e deposita as flores sobre uma pedra com a inicial M. E todas as vezes ela já sabe o que vai ver quando se levantar, um menino todo deformado que abre lhe os braços e diz:
                              - Mamãe, que bom que você veio!
                               Ela o abraça:
                              - Mamãe está aqui.
                               Ele chora e pergunta:
                              - Por que você me matou?
                               Ela o consola:
                              - Não pense nisso agora...
                               Laura canta lhe uma canção até ele parar de chorar e eles se despedem até o ano seguinte. Pois a mulher sabe que ele vai estar lá, esperando sempre e ela não vai deixá-lo, conforme o combinado.
                           

                       


MISTÉRIO XXIII - O SINISTRO CASO DO MAL ENTENDIDO.





                                     Esse caso aconteceu no final do século XIX, numa cidadezinha de Minas Gerais, um lugar tranquilo e de poucos moradores. Jocemar era um homem trabalhador e tinha, com muita luta, conquistado um pequeno comércio, mas não ia bem. Havia contraído  dívidas e andava preocupado. Estava no balcão, em pé, com o cotovelo apoiado e a mão no queixo. Pensativo, analisava um meio de sair daquela situação. Não tinha nenhum cliente naquele momento, eles estavam escassos desde que surgiu um concorrente na rua de cima, que trazia novidades e produtos melhores da capital. Sem recursos, o comerciante via-se cada dia mais às mínguas. Quando foi surpreendido por um menino:
                                   - “Moço, Padim perguntô si o sinhô qué enricá?
                                    -“ Quê”? – perguntou o homem surpreso com aquele menino de calças curtas e cabelos negros.
                                   - “Padim perguntô si o sinhô que enricá”?
                                   - “Padim? Que Padim? Por um acaso é algum daqueles unhas de fome dos parentes de mãinha?
                                    - “Sei não sinhô, sei somente que ele mandô perguntá”.
                                     - “Quero dinheiro dessa corja não. Se eu tivé que enricá vai ser por meu esforço. Faça-me o favor de levá esse recado a ele”
                                      O moleque saiu correndo, mas antes deixou um pacote no balcão. Quando Jocemar abriu e viu a quantia de dinheiro que havia, correu atrás dele que gritou ao longe que o dinheiro era para ele, dado pelo “ Padim”. Ao chegar à casa, o comerciante contou para a esposa Juraci o ocorrido, ela sugeriu que usasse para pagar as dívidas que com certeza era de algum tio ou irmão de sua mãe, arrependidos pela injustiça do passado.
                                     Após um ano, o comércio de Jocemar já estava melhor, mas ele não estava satisfeito diante do crescimento do concorrente que havia ampliado as instalações, o homem estava se corroendo de inveja. Num final de tarde chuvoso e frio, não havia mais ninguém nas ruas e o comerciante pensava em fechar as portas e ir para casa, no aconchego de seu lar com sua mulher e seus três filhos. Quando se preparava para pegar o guarda chuva, ouviu uma voz atrás do balcão.
                                       -“ Moço, Padim perguntô si o sinhô qué enricá?
                                        - “Cê di novo aqui moleque, quem é esse Padim? Ninguém dá dinheiro pá ninguém não, mi exprica essa história”...
                                        - “Sei di nada não sinhô, sei somente qui Padim perguntô si o sinhô qué enricá”.
                                        - “Pois diga a esse Padim que quero falá com ele”
                                         - “Ele vem não sinhô, ele só vem si o sinhô repondê qui qué enricá”
                                         - “Pois eu não quero! Diga a ele que eu não preciso do dinheiro dele, quando mãinha mais precisô eles não quiseram ajudá. Diga que agradeci pelo dinheiro, vou pagá o que ele me emprestô, não quero nada dessa gente”.
                                          O menino virou as costas e saiu correndo, mas antes deixou um pequeno embrulho sobre o balcão. Quando o comerciante viu o pacote, correu em direção a ele para devolver, mas não houve mais tempo.
                                          Contou para Juraci, que ficou feliz, dizendo que gostaria de comprar umas roupas para os filhos, não pensou duas vezes em gastar. O marido não quis que usasse o dinheiro, guardou-o por dois meses. Depois, diante das necessidades, resolveu usá-lo. Mas ficou preocupado se viessem lhe cobrar essa quantia. Mas a esposa explicou que nada havia assinado, então não havia dívidas. Ele não parava de pensar quem seria esse Padrinho, imaginava que era algum tio de sua mãe que no momento em que ela mais precisou não a amparou, foi expulsa de casa, pois estava grávida e solteira e após dar a luz  morreu com tuberculose, sozinha e pobre. Ele foi criado por uma família humilde que sempre o lembrava da fortuna de seus entes. Muito revoltado, nunca procurou contato com esses parentes e nem desejava nenhuma aproximação, sentia muita raiva pela situação de miséria que sua mãe falecera.
                                           Depois de um tempo, Juraci engravidou novamente e veio a nascer uma menina, que era o grande sonho do casal. Jocemar ficou feliz demais com a chegada da pequena, após o nascimento a esposa quis batizar a criança, mas o marido não permitiu, assim como não havia permitido batizar os outros três filhos. Ele não gostava de igreja.  Ela, mesmo contrariada resolveu acatar as ordens do marido.
                                             Passado alguns meses do nascimento de Maria, o menino voltou a aparecer no comércio do Jocemar, o homem assustou-se, pois o moleque estava igualzinho da primeira vez, não havia mudado nada nesses anos. Nem crescido. Fez a mesma pergunta de sempre e o comerciante reparou que ele tinha um pacote na mão, com certeza mais dinheiro. O homem foi logo falando indignado:
                                              -“ Que diacho é você menino”?
                                             Falou isso e pulou do balcão grudando- o pela camisa de botões. O menino assustado olhou-o e seus olhos ficaram vermelhos como brasa e apareceram dois chifres e o rosto transfigurou-se, surgindo o demônio em frente ao comerciante que o largou alarmado. Nisso vinha entrando a esposa com a pequena Maria nos braços. O capeta correu em direção à mulher e puxou o bebê e foi em direção à porta e falou:
                                            - “ Essa é minha, pelo pagamento do dinheiro que lhe dei”- E fugiu levando a filha do casal.
                                            Jocemar e Juraci ficaram atônitos e desesperados. A primeira decisão que tomaram foi  de irem à igreja e falar com o padre, que não acreditou no casal. Imaginou que eles tivessem feito alguma coisa com a filha e estavam tentando encobrir o mal. Era uma história irreal e o padre não simpatizava nem um pouco com aquele homem que não frequentava sua capela. Comunicou as autoridades o sumiço da pequena Maria e todos os moradores da cidade ficaram desconfiados dos pais da menina. Passando por uma situação muito difícil, o homem começou a procurar pela filha dia e noite sem cessar e a esposa passou a ir à igreja. Entrava quietinha e sentava num canto atrás e ali ficava entre penitências e rezas. Ninguém vinha falar com ela. Até que teve um dia que o padre se aproximou e disse para fazer uma novena e ela começou imediatamente.
                                            Nove dias depois estava a mulher sentada numa cadeira na porta da cozinha esperando a água do café ferver no fogão de lenha, era cinco horas da manhã e ainda estava escuro e passavam muitos trabalhadores indo para a roça. Todos apontavam e cochichavam e Juraci abaixava a cabeça triste, pois não tinha a solidariedade de ninguém. Seu marido estava revoltado e já não trabalhava, saia cedo de casa e passava todo o dia andando que nem louco e sem destino, dizendo que estava à procura da filha. Os alimentos já estavam acabando em sua casa e ela se fazia valer da horta e dos poucos animais que possuía na pequena chácara que residia.
                                             Foi quando ouviu alguns trabalhadores vindos em direção à sua casa gritando afoitos que acharam a menina. A mulher sentiu seu coração disparar e desceu os poucos degraus que davam para a rua e foi logo perguntando onde estava sua filha. Eles contaram que três homens e duas mulheres chegaram à roça, próximo dali e ouviram um choro e constataram a presença de uma menina entre o bambuzal, mas não conseguiram remover a planta. Quando Juraci chegou ao local, seu marido já estava lá e batia desesperado com um facão nos bambus, mas era em vão, não conseguia cortar. Começaram a chegar pessoas que ouviram a notícia e os homens se revezavam com facões, foices, facas, punhais, mas nada cortava os troncos. A criança chorava, mas não passava para o outro lado que estava bem fechado. Já se aproximava do meio dia e não conseguiam fazer nada. Maria adormeceu e os homens continuavam a tentativa em vão. Desesperada com a fome e sede da filha, pois não conseguiam passar nada pelo vão do bambu, a mulher pegou o facão e bateu em uma das hastes e percebeu que cortou, começou a cortar todos os troncos e chegou até a menina que acordou ao ser levantada  do solo pela mãe. A criança estava bem e foi acolhida por todos que ficaram impressionados com o que viram. Após o acontecido, as pessoas foram se dispersando, indo embora e Jocemar parou por um momento e pediu para que a mulher continuasse o trajeto. Ela não queria que ele voltasse, mas ele disse que precisava, pois isso não ia parar. Ao vê-lo se distanciando a esposa sentiu seu coração se apertando e teve a certeza que não o veria mais.
                                             Ao voltar ao bambuzal, avistou um homem muito bem arrumado de terno e chapéu dizendo que já o esperava, esse homem estava num cavalo e disse ser o Padrinho, mandou que ele subisse no animal e foram em direção a um lugar que Jocemar não imaginava onde era. Passaram horas galopando e o comerciante começou a ficar com medo. Começou a rezar bem baixinho e o homem bem vestido, que até então estava em silêncio, virou o rosto para trás e disse bravo:
                                             -“ Você quer parar de cochichar no meu cangote”!
                                             Disse isso e começou a correr mais com o cavalo, o comerciante mais assustado ainda continuou a reza, só que dessa vez baixinho, quase imperceptível. O homem irritado gritou com ele:
                                              -“ Quer parar de cochichar no meu cangote”!
                                               Jocemar,  tremendo de medo, percebeu que estavam rodando sempre no mesmo lugar e já era noite, estava frio e escuro, começou então a rezar só no pensamento, o homem enfezado, olhou para trás com os olhos em brasa e o rosto totalmente desfigurado e disse aos berros:
                                                - “Eu já disse para você parar de cochichar no meu cangote”!
                                                Disse isso e o cavalo saltou por cima do muro do cemitério da cidade. E ao ver aquele animal saltando tão alto, o comerciante gritou:
                                                  - “Valha-me Nossa Senhora!”
                                                  Ao dizer isso, ele caiu para o lado de fora do muro e viu um monte de demônios o aguardando, começaram a puxá-lo para dentro do portão, ele assustado e meio entorpecido por ter batido a cabeça, continuou rezando no pensamento e os demônios começaram a queimar as mãos e não conseguiam segurar nele, nisso veio um bicho horrível com pés de bode e grandes chifres, dizendo que veio pegar o que era dele, sua alma. Mas Jocemar disse nunca ter vendido sua alma, nunca pediu dinheiro ou aceitou, simplesmente ele deixava o dinheiro lá por que queria. Nisso o demônio olhou para o capetinha que transformava no menino e esse lhe disse:
                                                   - “Não olhe assim para mim! Eu não fiz nada!”
                                                   O demônio ficou tão furioso que grudou o capetinha  pelo chifre e o levou a pontapés para dentro do cemitério. Jocemar ficou ali, lívido e sozinho.




     
                                                   


                                           
 
                                               
                                         


 

domingo, 9 de setembro de 2012

MISTÉRIO XXII - O SINISTRO CASO DA LÍNGUA DE BOI


                        






                            Próximo à cidade de São Luiz no Maranhão, no ano de 1920, havia um homem muito mesquinho. Trabalhador na área rural, costumava ganhar o dinheiro e guardar embaixo do colchão, muito pouco utilizava para as despesas, deixando sua família passar fome. Ele gostava muito de comer língua de boi e quando comprava, trazia e mandava Izolda preparar com bastante caldo, sentava-se à mesa e comia até o último pedaço, deixando para a esposa e o filho, o caldo. Ela colocava farinha de mandioca e dava para o menino que “lambia os beiços”.  Ubiraci cresceu vendo o pai comendo e não dando para ele, ficava com os olhos compridos de vontade de comer da língua, sua mãe começou a pedir um pedaço enquanto o guloso marido se abarrotava com o aperitivo.
                           - Dê um pedacinho para o menino, ele não se aguenta de vontade, reclamava a pobre mulher...
                             O homem resmungava mal humorado e tirava uma pequena lasquinha que o menino comia com desespero. Logo via terminado e passava a olhar o pai novamente, mas esse já não se compadecia do pobre faminto e restava para Ubiraci o caldo com a farinha.
                             Os anos se passaram e nada mudava naquele cerrado, nem as maneiras rudes de Joselino, que ficava cada vez mais agressivo e cruel. Costumava bater no filho por nenhum motivo, bastava chegar cansado e nervoso e descontava no franzino moleque que era pequeno e amarelo. Izolda tinha um dó danado, mas nada podia fazer, abaixava a cabeça e ficava contida em sua dor, depois passava a mão na cabeça do menino que já nem chorava de tão acostumado com as surras.
                               Quando o pequeno estava com nove anos, sua vontade de comer língua era desmedida, pois nunca se saciava com aquela minúscula porção que seu pai lhe dava e ficava imaginando um jeito de poder comer à vontade. Um dia Joselino chegou com uma língua imensa, quando ele trazia a iguaria, voltava para a casa mais feliz e era uma das vezes que o moleque não apanhava. Todo contente mandou a esposa preparar para o almoço do dia seguinte e que mandasse em sua marmita, permitiu que tirasse a pequena porção do menino.
                                 Ao amanhecer o dia, Ubiraci pegou o cavalo e começou a dar voltas à casa , circulava da estrada de terra até o portão e até à porta da entrada, passou a manhã inteira fazendo isso. Quando chegou o horário do almoço sua mãe mandou que ele levasse a marmita para o pai. No meio do caminho abriu a vasilha e comeu a língua. Quando Joselino percebeu que no seu almoço só tinha feijão e farinha ficou irado e perguntou  da mistura. O filho disse que havia chegado uns homens na casa e que sua mãe preparou  o cozido para eles. Quando ao final da tarde o marido chegou à casa, soltava fogo pelas ventas  e foi logo indagando quem eram os homens que estiveram  lá em sua ausência. A mulher não soube explicar e ele nervoso e desconfiado bateu nela, o menino ficou quieto e nada falou.
                                   Passado uma semana, novamente o homem compra língua e pede para fazer e mandar no almoço, o menino monta no cavalo e repete as pegadas, come a mistura e diz ao pai que os homens estiveram novamente em sua casa e que sua mãe mandou que ele esperasse do lado de fora. Joselino volta bravo para casa e constata novamente as pegadas, mas sua mulher nega que alguém esteve ali e ele a espanca, acreditando estar sendo enganado. Para comprovar sua dúvida ele compra uma nova língua e manda a mulher preparar novamente, dessa vez ele pensou, se essa mulher der a minha mistura para outro homem eu a mato. E foi trabalhar. Ubiraci que estava gostando de comer sem levar a culpa, novamente repete a façanha, deixa pegadas de cavalo próximo à casa e come a iguaria da marmita. Quando Joselino recebe o almoço só com feijão e farinha, monta no cavalo e vai para casa feito doido, deixando o menino para trás. Chegando, ele surra a mulher com um pedaço de toco de lenha, batendo nela a ponto de querer matá-la, nisso o menino está entrando pela porta e vê a mãe toda ensanguentada caída ao chão. Ela sabia que era o filho que comia a língua, mas não dizia nada para que o pai não o espancasse, mas diante daquele momento que ela viu que seu marido a mataria por ciúme, pediu para que Ubiraci dissesse a verdade. O menino olhou com olhar comprido e  respondeu:
                              - Mãinha, não sei de nada não...
                              Com essa fala do menino, Joselino que ainda tinha um pouco de esperança que sua mulher não estivesse traindo-o, ficou desolado e partiu para cima de Izolda com o pedaço de pau e deu nas costas e cabeça dela. A mulher já quase desfalecida implora  para o menino dizer a verdade e ele só a olha sem nada responder. Num ímpeto de ódio ela fixa os olhos  no filho e o amaldiçoa dizendo:
                       - Pelo diabo que existe nessa terra eu condeno você seu mentiroso e guloso a comer língua e nunca se sentir saciado, nenhuma língua dessa terra vai lhe saciar.
                                Disse isso e caiu desfalecida. Joselino pensando que havia matado a mulher, pegou seu cavalo e saiu pelo mundo. O menino vendo o pai ir embora e a mãe ali como morta, pegou outro cavalo e saiu também, sem destino.
                                  Dez anos se passaram, Izolda se arrasta pelo chão cuidando da casa. Ficou aleijada das pernas , com a pancada nas costas quebrou a coluna. Vive numa miséria de dar dó, vizinhos de fazendas próximas a ajudam com alguma coisa, um leva uma farinha, outro leva um leite, outro leva uma carne seca e assim ela vai vivendo. Preferia ter morrido naquele dia, mas o destino não quis e agora vive esperando a morte.
                                    Certo dia, ao receber a visita de uma comadre que veio lhe trazer farinha e sal, numa conversa, a mulher lhe contou que estava havendo um grande infortúnio e que os bois estavam aparecendo mortos sem língua. Um roceiro havia visto um monstro rodeando os pastos, havia dado a descrição de um ser de outro mundo, horrível, com couro duro e seco parecendo couro de cobra morta. Sua cabeça imensa mostrando o crânio e os olhos saltados injetados de sangue. O homem que presenciou o bicho maldito ficou doido, de tanto medo que passou, agora não falava coisa com coisa. Mas o fato é que existindo ou não a tal criatura, os bois estavam morrendo. Izolda ouviu a narrativa muito assustada, pois vivia sozinha naquela casa no meio do nada. Arrastava-se, pois suas pernas estavam atrofiadas. A vizinha procurou acalmá-la, mandando fechar a porta assim que começasse a escurecer e que ficasse dentro da casa e não saísse por nada, nem que ouvisse barulhos. Disse também que até então só sabiam de ataques a bois, por isso ela não tinha que se preocupar. E todos  estavam esperando os homens chegarem da empreitada de trabalho para formar um mutirão e ir atrás da criatura.
                             Quando a vizinha foi embora, Izolda ficou pensativa. Tinha medo, mas decidiu que passaria aquela noite no pasto vizinho, precisava tirar uma dúvida que a estava atormentado. Ao escurecer, a mulher pegou um cobertor fino e saiu se arrastando por entre o cerrado. Feria-se nos gravetos e pedras, mas continuava sua jornada. Ao chegar ao pasto ajeitou o cobertor e deitou-se próxima a uns bois. Ficou ali pronta para passar a noite. Quando já era de madrugada, ela acordou com barulhos e olhou na noite escura e quente e viu um vulto por entre os animais. Não teve dúvida que era a criatura, havia derrubado um boi e estava abaixado comendo sua língua quando a mulher gritou chamando sua atenção.
                            - Ei! O que você está fazendo?
                            A criatura parou e olhou aquela mulher que até então ele não havia visto, arregalou os olhos que já eram grandes e injetados de sangue, ficou olhando para ela parado. Deu um pavor tão grande na mulher que tentou se arrastar e não conseguiu, pois estava paralisada pelo medo, nunca tinha visto nada tão horrível, o bicho era seco e assustador. Sua boca estava com a língua do boi pendurada e ensanguentada. Ele mastigando aquela carne veio em direção à mulher que pôs a mão na cabeça e começou a gritar diante do horror. O bicho chegou perto dela e abaixou-se e deitou em suas pernas encolhido, mas ainda mastigando a língua do boi. Izolda atordoada com o cheiro fétido e o pavor  de ver aquele monstro deitado em suas pernas, ficou paralisada por um tempo, não podia se mexer pois ele estava quietinho deitado em seu colo. Ela o ouviu soluçar baixinho. Ele ergueu a cabeça e a olhou e em seus olhos desciam lágrimas. Izolda compreendeu naquele momento. Os olhos dela também lacrimejaram e ela disse, passando a mão em sua cabeça descarnada:
                               - Filho, eu lhe perdoo.
                                Ao amanhecer o dia, a mulher estava entrando pela porta da cozinha, sendo levado no colo por um rapaz lindo, robusto e alto. Nunca mais ninguém soube de algum boi que tenha morrido nas redondezas sem a língua.

 
                 


 
            

MISTÉRIO XXI - O SINISTRO CASO DOS IRMÃOS GÊMEOS






                                     O Chevette 76 descia pela estrada que fazia divisa de Minas Gerais e Bahia. O ano era 1982, o motorista estava cansado e ao seu lado dormia sua mulher e no banco de trás suas duas filhas. A noite estava escura e já era madrugada. Frederico pensou em parar o carro para descansar um pouco, mas precisava de um lugar seguro, seus olhos estavam pesados quando ao fazer uma curva viu um bizarro homem pedindo carona, ele fixou os olhos naquela imagem intrigante e percebeu que tinha sangue por todo o corpo, não parou, temeu ser alguma emboscada. Estava assombrado. Ficou pensando no que vira, não acreditava em assombrações, mas assustou-se e não conseguia tirar aquela imagem de sua cabeça. Andou mais um quilômetro, após outra curva viu o mesmo homem pedindo carona, tomou um susto tão grande que perdeu a direção do carro e caiu numa ribanceira. Toda a família morreu.
                                       Alex veio correndo e encontrou o irmão gêmeo Alexandre que contou o ocorrido, estava muito abalado, pois a brincadeira havia se transformado em uma tragédia.  Os irmãos adolescentes haviam se mudado para a casa próxima à estrada fazia um ano, com falta do que fazer, inventavam brincadeiras que deixavam os motoristas assustados. Primeiro tiveram a ideia de colocar pedras fechando o tráfego e quando os carros vinham pensavam que era alguma emboscada de ladrões e voltavam para trás. Os irmãos tiravam as pedras e ficavam esperando a polícia que quando chegava não via nada. Eles viviam aprontando alguma coisa e ultimamente tinha tido a ideia de colocar molho de tomate pelo corpo e assustar motoristas que passavam tarde da noite. Eles eram idênticos, muito magros e excessivamente brancos, conseguindo uma aparência irreal, parados à beira da estrada de madrugada. Ficava cada um em uma curva e os viajantes aterrorizados contavam a história do homem que aparecia na estrada e juravam que era uma assombração, pois aparecia em um local e depois aparecia mais à frente. Mas eles não esperavam pelo ocorrido,  estavam  abalados  com  o que havia acontecido naquele momento, desceram a ribanceira e viram a família morta. Voltaram para a casa e deitaram na cama, mas não conseguiram dormir. No dia seguinte, a mãe veio contar a eles do acidente trágico, fingiram não saber de nada.
                                            Durante todo aquele mês não aprontaram mais, nem tocaram no assunto, com receio. A família foi enterrada e foi dado como acidente. Numa tarde a mãe pediu para que eles fossem até a venda fazer umas compras. Eles não tinham carta, mas já dirigiam a velha caminhonete da família. Quando estavam a caminho  o tempo mudou para chuva e de repente  caiu uma tempestade. Resolveram voltar mesmo embaixo de chuva e quando estavam na estrada o carro derrapou e rodou, eles conseguiram dominar a direção. Ficaram pálidos de susto. Pararam a caminhonete e se  recuperaram do sobressalto. Naquela noite, inexplicavelmente resolveram voltar a fazer a velha brincadeira de assustar as pessoas na estrada.
                                             Vinha um automóvel em grande velocidade, com o farol alto e um dos gêmeos já estava na primeira curva, quando o carro se aproximou ele entrou na frente e o  motorista quase perdeu a direção, acelerou mais com o susto e continuou, quando chegou na outra curva o outro irmão entrou na frente do carro. Estava assustador com sua aparência esquelética e branca, o corpo todo manchado de sangue e os cabelos desgrenhados. O motorista rodou na pista e caiu na ribanceira. Os irmãos não conseguiram ver o carro, estava escuro e chovendo muito. Resolveram dar uma olhada lá embaixo, com jeito dava para descer. Uma menina subiu chorando, estava toda machucada e pedia para que ajudassem seus pais e sua irmã que estavam presos na ferragem. Alex desceu correndo e seu irmão foi atrás, chegando lá viram a caminhonete toda amassada e se aproximaram, parecia com a caminhonete deles. Ao verem o corpo e virarem-no, tiveram um assombro terrível, eram eles que estavam mortos no carro. Eles não haviam sobrevivido naquela tarde e lembraram que perderam a direção ao ver as meninas na estrada. Olharam para trás e lá estavam as duas, olhando-os fixamente, com ódio.