Raquel Delvaje

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

MISTÉRIO XXIV - O MISTERIOSO CASO DO MENINO DA RODA DOS EXPOSTOS.



                                                          Era madrugada quando tocou a campainha da roda dos expostos, a primeira do Brasil, em Salvador, no ano de 1736. A freira bondosa acordou sonolenta e sentiu seu coração disparar, era a segunda criança da semana. A rotina naquele asilo nos últimos dois anos estava bastante agitada, tinha noites que deixavam duas a três crianças. Maria do Rosário era bondosa com os pobres enjeitados, acolhia-os com amor  e dedicava sua vida em servi-los:
                                 - Boa noite, meu filhinho, prazer em recebê-lo, nós vamos cuidar de você – Disse isso e sentiu as lágrimas brotarem em seus olhos.
                                  Era preocupante a situação do abrigo, havia muitas crianças e não parava de chegar outras tantas. E sempre que vinha um novo morador, era cercado pelas mulheres, querendo ver a carinha do recém-chegado à vida. Colocaram o nome de Raimundo e imediatamente passaram a chamá-lo de Mundinho. O padre Aurélio chegou cedo para tomar café e foi  lhe apresentado o menino. Quando o pároco olhou para aqueles olhinhos brilhantes, teve certeza de ter recebido um sorriso e sorriu também. Foi uma simpatia imediata, prometeu que se ninguém o levasse, quando ficasse mais mocinho iria para a capela, seria coroinha, pegou-o no colo e riu largamente.
                                    As visitas que já eram diárias passaram a acontecer mais vezes ao dia, bastava não estar em alguma função na paróquia que apressava os passos para a casa de abrigo. As senhoras, frequentadoras das missas, acostumadas com a visita do padre nas horas do chá e dos jantares, estavam estranhando o sumiço, ficaram enciumadas com o pequeno Mundinho ao saberem que era o motivo da ausência do homem.
                                      Os anos passaram e ninguém buscou o menino, que crescia forte. No bilhete que estava com ele no dia em que fora deixado na roda, dizia que possuía uma mãe que o amava muito e que viria buscá-lo, mas esse dia nunca chegava e o moleque não conhecia outra vida que não fosse aquela do asilo. Esperto e falante, vivia tirando as irmãs do sério, que eram carinhosas e a maioria gostava dele, pois sabia cativar. Mas tinha uma freira, Griselda, que era muito mal humorada, essa o órfão nem chegava perto, era a que mais aplicava a palmatória e se irritava por qualquer motivo. Tinha uma implicância em especial com aquele que era o pupilo do padre, mas em vista deste, sempre fingia carinho. Um dia, ao deixar cair o prato da refeição no chão, Mundinho com seis anos, foi cruelmente castigado por Griselda, que além de deixá-lo sem jantar, bateu com a palmatória e prendeu-o no porão frio e escuro, onde tinha ratos e baratas e o deixou por toda a noite. As demais freiras não concordavam com tamanho castigo, mas obedeciam, pois eram subordinadas. Quando padre Aurélio chegou no dia seguinte mais cedo que de costume, pois uma delas conseguiu avisá-lo do castigo imposto  ao órfão, a freira algoz ficou pálida que nem papel e correu tirar o moleque do porão e assustou-se,  o menino estava com o rosto desfigurado pelas mordidas dos ratos. Foi um choque terrível para todos os presentes, a criança quase morreu, teve febres e infecções. Depois de ter sido tratado por um médico que estava residente em Salvador, ele se recuperou da infecção, mas ainda estava aberta a ferida e precisava de cuidados maiores e por decisão de todos, foi morar na capela.
                     Assim que chegou, foi muito bem recebido, as mulheres frequentadoras da paróquia vieram recepcioná-lo e encheram o pároco de elogios, todas eram unânimes em citar a bondade e o espírito generoso ao acolher a criança e o padre por sua vez, sentia-se muito feliz, pois adorava elogios.
                      Passado alguns meses, houve a cicatrização do ferimento e  ficou uma coisa horripilante. Muitas pessoas sentiam repulsa ao ver aquele rosto tão deformado e o padre  arrependeu-se de ter acolhido o menino. Não sabia como se livrar, pois assim como foi enaltecido pela atitude do acolhimento, poderia ser mal visto ao deixá-lo, percebeu que não tinha opção, teria que ficar com a criança. Passou a se aborrecer com a presença do pequeno que já não conseguia ser tão engraçadinho, era repelido o tempo todo e via nos olhos das madames o desprezo e ouvia as palavras de infortúnio e comiseração. Passou a ser um fardo e não demorou muito para as pessoas pedirem ao padre que durante a missa ou eventos sociais que aquela criança não aparecesse publicamente. E foi assim que o Mundinho ia crescendo, desprezado. Via os anos passarem e tudo ficava pior, sua feiura só aumentava. As pessoas se desviavam e ninguém queria se aproximar dele. Vivia no claustro como um bicho, escondido de todos. O vigário praguejava o dia em que decidira ficar com aquele menino.
                       Um dia, chegou uma mulher para se confessar, dizendo ao padre Aurélio que não podia mais conviver com a culpa de ter deixado uma criança na roda, pois havia engravidado e conseguiu esconder a gravidez da família, era solteira e pretendia na época noivar e casar. Por um amor infeliz, Laura perdeu a inocência e teve um filho, o qual não pode assumir. Disse ela que estava disposta a reaver a criança que estaria com 13 anos, seu marido havia falecido e podia adotar o menino sem que ninguém soubesse, era uma forma dela se dizimar da culpa que a perseguia. Surgiu uma esperança no pároco que aquela criança fosse Mundinho e prometeu à mulher que a ajudaria, pediu alguma informação que auxiliasse a encontrar o filho. Ela disse que quando o deixou ele tinha uma pulseira de ouro com uma pequena cruz e estava vestido com vestidinho azul e coberto com uma manta de pele. Naquele mesmo dia, o vigário foi ao abrigo e pediu para as freiras que gostaria de olhar o livro de registros. Griselda o acompanhou. Desde o dia do incidente, a mulher mudou completamente, ficou menos severa e procurava ser melhor para as crianças. Sentia-se muito mal, pois sabia do destino cruel do menino e de sua culpa. O padre a olhava incriminando-a e a desprezava, sentia que aquela freira era culpada do fardo que ele agora carregava.
                           Entraram os dois sozinhos na saleta escura e estreita, quando estavam folheando as páginas dos livros de registro, tanto o padre quanto a freira torciam para que o menino fosse Mundinho. O vigário havia dito a ela o ocorrido e talvez fosse uma forma de ambos se aliviarem da carga e foi um grande desapontamento quando viram que a criança da pulseirinha de cruz era na verdade José Maria, o menino que havia sido colocado na roda na mesma semana. Ambos sentaram e se entreolharam amargurados com a descoberta. O silêncio se fez diante da desconcertante revelação e foi quebrado por Griselda que teve uma iluminada ideia. Sugeriu que trocassem os registros, estavam tão próximos que não haveria como desconfiar, trocaria os nomes de Mundinho por José Maria e vice versa, usaria uma técnica que aprendera para fazer correções sem rasurar. Acordo feito, era só comunicar a compungida mãe que seu filho era Mundinho. Prometeram um pacto de segredo, em que ambos eram interessados.
                               Ao apresentar para a  suposta mãe, o menino, foi visível a cara de decepção que ela esboçou e se recusou a reaver aquele filho. Diante de seu segredo revelado, o padre coagiu-a a adotar o órfão, dizendo que ela era a mãe e deveria se responsabilizar. Tentaram de toda a forma um acordo. Laura sugeriu ajudar financeiramente a igreja, mas o padre não queria mais o Mundinho, nem por dinheiro, não suportava a ideia daquele convívio em sua capela e não podia devolvê-lo ao abrigo, pois não seria bem visto. A mulher explicava que as pessoas iam desconfiar, pois o que levaria alguém a adotar uma criança deformada que causava repulsa a todos que o viam. O padre balançava os braços desesperado na tentativa de convencê-la, dizendo que podia alegar amor ao próximo. Mas ela estava irredutível, disse que não e pronto.
                              O vigário furioso ameaçou revelar o segredo e ela o olhou indignada, não acreditava que estava ouvindo esse despautério e paralisou-se diante da possível revelação de seu passado. Era uma mulher da sociedade e acabaria com toda a reputação dela. Isso não podia acontecer. Diante do impasse, tomaram uma decisão, matariam o menino e todos estariam livres. A freira foi chamada e ficou lívida diante do proposto. Disse que jamais participaria disso. Mas o padre foi veemente ao dizer da culpa que tinha ao mexer nos dados do livro e que seria interessante Dona Laura ser revelada da trama suja. Diante das ameaças, Griselda viu que não tinha outra saída, deveria aceitar e por um ponto final em tudo.
                            Após o combinado, a suposta mãe foi até a capela e pegou o Mundinho, que estava magro, disse a ele que iriam passear. O menino sentiu uma alegria muito grande em seu coração. Aquela mulher bonita dando lhe atenção era realmente comovente ao pobre enjeitado. Ao chegarem a uma cabana, no meio do mato, o menino muito alegre, conversava timidamente. Laura sentiu dó e não queria mais  realizar o plano de matar aquele que ela pensava ser seu filho. Abraçou-o e revelou  ser sua mãe, que não poderia ficar com ele, mas o amava. Mundinho sentiu seu coração cheio e forte. Abraçou Laura e pediu que não o deixasse nunca mais, que ele também a amava e esperou por muito tempo sua volta. A mulher, tomada pela emoção, prometeu nunca mais o deixar e diante do combinado chegou o padre com uma faca e a freira. O menino pressentindo alguma coisa, olhou para Laura com seus olhinhos encharcados de lágrimas e disse:
                             - Mamãe, o que vocês vão fazer?
                              O vigário a olhou juntamente com a freira e entregaram lhe a faca. O padre segurou o menino pelo corpo franzino e mandou que Laura o esfaqueasse, senão revelaria seu segredo. A mulher, tremendo, segurou a faca na mão e enfiou na barriga de Mundinho, que chorou e olhando para a mãe disse:
                             - Mãezinha, por que fez isso comigo? Aquele bilhete que você me deixou dizendo que eu tinha uma mãe que me amava muito e que um dia voltaria... Sempre lhe esperei...
                             Assustada, Laura olhou para o padre e para a freira e disse como se fosse um instinto:
                             - Esse não é o meu filho, eu nunca deixei bilhete nenhum...
                             O padre tomou a faca de sua mão e esfaqueou o menino que chorava, matando-o. Griselda tremia. A suposta mãe exigiu uma explicação do que aconteceu ali, dizendo que aquele não era seu filho e a obrigaram a cometer um assassinato. A freira confessou ter trocado as fichas, diante do pároco que a mandava se calar. Histérica e em estado de choque, Laura pegou a faca e atingiu o padre que caiu no chão, foi para cima dele e perfurou-o inúmeras vezes, até ver a última gota de sangue jorrar  e a freira saiu correndo em seus passos pesados, pois era gorda e tinha pouco fôlego, facilmente a mulher enfurecida e com a faca na mão a alcançou, esfaqueando-a também.
                              No dia seguinte, Laura foi até o abrigo à procura de um menino que tinha sido deixado lá com um bilhete dizendo que sua mãe o amava e um dia voltaria para buscá-lo. Maria do Rosário deduziu que seria Mundinho,pois lembrava desse bilhete, mas ao olhar os registros, estranhamente verificou que se tratava de José Maria, concluiu que estava ficando velha e já não raciocinava bem. Laura disse que era filho de uma empregada antiga sua e que lhe pedira que o adotasse.
                              Após constatarem o sumiço do padre, da freira e do menino, encontraram os dois primeiros esfaqueados e mortos, um ao lado do outro. Estranhamente o corpo de Mundinho não estava lá e foi atribuído a ele o assassinato. Uma vez por ano Laura leva flores a um curioso túmulo no meio do mato, ela pede perdão e deposita as flores sobre uma pedra com a inicial M. E todas as vezes ela já sabe o que vai ver quando se levantar, um menino todo deformado que abre lhe os braços e diz:
                              - Mamãe, que bom que você veio!
                               Ela o abraça:
                              - Mamãe está aqui.
                               Ele chora e pergunta:
                              - Por que você me matou?
                               Ela o consola:
                              - Não pense nisso agora...
                               Laura canta lhe uma canção até ele parar de chorar e eles se despedem até o ano seguinte. Pois a mulher sabe que ele vai estar lá, esperando sempre e ela não vai deixá-lo, conforme o combinado.
                           

                       


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